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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

domingo, 12 de julho de 2020

Livro - Reverso inclinado. Capítulo 7. Algumas revelações intrigantes

Algumas revelações intrigantes

A cozinheira, mulher obesa e espadaúda, de altura mediana, tinha no frango ao molho pardo o carro chefe dos variados pratos que preparava com inigualável habilidade; ela mesma matava a ave, colhia o sangue e depois dava um toque final com o coentro fresco e viçoso que cultivava nos fundos do quintal. O arroz branco e soltinho era um acompanhamento perfeito, para alegria da mesa. Lá estava ela, preocupada com a comida que borbulhava no fogão a lenha, sem dizer palavra, embora visivelmente emocionada.

Num canto, vimos o caseiro, em roupas domingueiras. Era ele quem cuidava das rotinas familiares, fazendo a interlocução entre o proprietário e os demais empregados, bem como executava os reparos necessários no imóvel, desde as pinturas de paredes e partes metálicas até consertos de muros e rebocos em geral. Também tinha outras responsabilidades: trocava lâmpadas, mantinha o funcionamento da extensa rede elétrica e deixava portas e janelas com suas trancas e dobradiças engraxadas. Tinha, a par disso, um zelo profissional pelos jardins do entorno da residência; o roseiral que ali vicejava, com flores multicoloridas, era do agrado do patrão e fazia inveja aos passantes.
Foi ele o primeiro a adentrar ao quarto da vítima, porque estranhou que, quase onze horas, ainda não estivesse fora dos seus aposentos.
Por fim, também estava a camareira, assustada com aquela movimentação toda. Moça muito bonita, corpo fornido e com belas curvas bem distribuídas pelos seus aproximados um metro e setenta, tinha pele amarronzada e cabelos pretos e compridos, que lhe caiam sensuais sobre os olhos negros. Seus lábios carnudos lhe davam feições caiapós; suas pernas longas e bem torneadas, de pele perfeita e lisa, eram das que chamam a atenção dos homens, mesmo dos mais discretos.
Interessante foi observar que ninguém, entre os empregados, chorava a morte do patrão; sobre isso, Guilherme sussurrou ao delegado:
- Pelo visto, acho que o homem não vai deixar muitas saudades...
Dos parentes próximos, estava presente apenas o filho primogênito do morto – ele morava na fazenda e, como de costume, passava o domingo no casarão junto com o pai. Tios e tias estavam sendo avisados, logo chegariam vários; já o segundo filho, o mais novo deles, por conta de desavenças com o pai, morava no interior dos Estados Unidos, onde fixara residência; lá ele tinha mulher e uma filha pequena. Ainda não fora avisado da perda do pai.
- Nossa mãe morreu jovem, quando éramos crianças; poucas memórias ficaram daquele tempo.
E, dizendo isso, o filho do Coronel foi para a sala de estar, deixando-nos à vontade para os interrogatórios que íamos iniciar.
Havia um quarto empregado: era o capataz, que também fazia as vezes de administrador da fazenda. Assis Júnior e o caseiro confirmaram o que já se sabia: ele esteve no casarão durante a manhã, bem cedo; depois, saiu em viagem. Teria ido para São Paulo, a serviço do patrão, pelo trem das nove e quinze.
Nas conversas preliminares que mantivemos com os empregados da casa, surgiu nova e importante revelação: o caseiro, a camareira e a cozinheira saíram do local, todos juntos, às nove horas.
- Orientei todos, seguindo as ordens do patrão. Saímos juntos para fazer compras no Mercado Municipal – informou o caseiro.
Aliás, foi juntamente com eles que também saiu o capataz; como de costume, ficaria na capital paulista por alguns dias, quatro ou cinco, e seu retorno era esperado para quinta ou sexta-feira. Certamente também não tinha conhecimento, ainda, da morte do patrão.
O caseiro, a camareira e a cozinheira retornaram das compras, todos juntos, logo antes das onze horas, carregados com pacotes e sacolas.
O interessante é que a saída dos empregados, naquela hora e daquela forma, estava absolutamente fora dos costumes da casa, porquanto o encarregado das compras era o capataz, sob orientação repassada do caseiro.
As rotinas funcionavam mais ou menos assim: o caseiro estipulava o cardápio, ao gosto do Coronel; depois, mandava o capataz às compras. Isso era feito semanalmente, e os mantimentos eram trazidos no sábado de tarde. Muitos dos víveres, aliás, corrigiu o caseiro, nem eram comprados fora, vinham diretamente da fazenda. Carne de porco, de vaca, frango, galinha, ovos, hortaliças, legumes e outras coisas do tipo, nada disso era comprado, tudo vinha da roça.
Quer dizer, quase nada se comprava fora, ao menos em termos de mantimentos básicos; mesmo assim, quando faltava alguma coisa, era o capataz quem supria a despensa, fazendo isso sempre nas tardes de sábado: vinha da fazenda, carregado com os alimentos lá produzidos e passava no Mercado Municipal para comprar uma ou outra coisa a mais, não produzida por eles próprios. Hás muitos anos era esse o procedimento adotado.
Segundo as palavras do caseiro, no sábado tudo ocorreu sem novidades: o administrador da fazenda apareceu, como de hábito, descarregando o que era necessário para o domingo e também para todo o resto da semana.
- Então não faltava nada na despensa – falou Guilherme Holders, mais afirmando do que propriamente perguntando.
- Sim, isso é correto. Não faltava nada para a semana.
E continuou, para nossa surpresa:
- Por isso eu não entendi porque o patrão mandou todos nós para a rua. Falei que não precisávamos de nada, que a despensa estava completa. Mas ele foi enérgico, de modo que não tive alternativa, não é?
- Mas tinha que sair todo mundo ao mesmo tempo?
- Não, doutor, não precisava. Até falei isso para o patrão, quer dizer, um ou outro que fosse às compras já estaria bom. Ainda mais para comprar as bobagens que ele queria. O capataz, não, que ia viajar, mas que fosse só a camareira, não é, doutor?
Ao que Guilherme interferiu:
- Sim, ninguém tinha que ter saído, já entendi isso. E também já entendi que apenas um de vocês poderia ter ido; aliás, inclusive você sozinho daria conta do recado, não é mesmo? Não disse isso ao seu patrão?
Diante de um caseiro encabulado com essas palavras, Guilherme arrematou:
- E se é assim, então, porque você mandou que todos saíssem, sabendo que a coisa não fazia sentido?
Um tanto pensativo e titubeante, a resposta foi a seguinte:
- Ordens do Coronel, doutor. Ele foi muito claro, quase gritando: “saiam todos, tragam o que for necessário para a boia, e o que não for necessário, também. Estou mandado, vão logo!”. Eu tive que obedecer, não tinha outro jeito.
E acrescentou:
 - Ele parecia nervoso. Coitado, ele nem sabia que essa nossa ausência lhe custaria a vida.
Olhando para mim, com semblante carrancudo, Guilherme me disse que tínhamos que estudar isso com mais calma. E logo mandou mais uma pergunta:
- E sobre o capataz, que esteve aqui de manhã, como foi isso? Sabe o que ele foi fazer em São Paulo? Esta viagem já estava programada?
- Bem, doutor, para ser sincero, estranhei a presença dele aqui hoje cedo. É que ele quase nunca vem ao casarão nos domingos; e como ele já tinha vindo ontem, com os mantimentos, não teria que vir hoje. Mas, enfim, ele veio aqui, cedinho, e logo foi viajar, como o senhor já sabe.
- Ele não dorme aqui, de sábado para domingo?
- Não senhor, ele fica aqui para jantar; depois, conversa com a cozinheira, ou com a camareira; também gosta de ler algumas coisas que encontra na estante da sala. Raramente liga a televisão, enfim, coisas comuns, nada de mais. Depois ele regressa para a fazenda, quando já é noite avançada.
- E foi isso o que ele fez ontem? Ou mudou alguma coisa na rotina?
- Não mudou nada, não, foi isso mesmo.
- Ele tem carro?
- Usa um Jeep, que é do patrão e que fica para o serviço da fazenda; é bem velho, vive enguiçando, mas dá para o gasto.
- É casado, ou tem namorada?
- É solteiro. Namora a camareira, o senhor não sabia?
- Não, não sabia disso. Mas você não me respondeu se essa viagem de hoje já estava programada...
- Não, não estava. Pelo menos eu não sabia de nada. Fiquei sabendo agora cedo – e pela boca do patrão. Quando ele soube que o capataz estava aqui, ele me chamou no quarto para avisar sobre a tal viagem, dizendo vagamente que alguns problemas em São Paulo deveriam ser resolvidos. Não me deu maiores explicações, apenas me deu ordens para alertar o capataz o sobre o compromisso, acrescentando: “Manda ele embora logo, senão ainda acaba perdendo o trem!”.
Só Guilherme interrogava. O Dr. Alberto apenas ouvia, atento.
Perguntado sobre os passos subsequentes de todos os envolvidos, o caseiro foi enfático:
- Fiz como o patrão mandou: lembrei o capataz da viagem e ele falou que já estava de saída. Disse-me que poderíamos sair todos juntos. Como eu não sabia exatamente do que se tratava, perguntei o que ele ia fazer em São Paulo; mas a resposta foi simples, bem curta e sem maiores detalhes: “vou resolver alguns problemas do patrão; ordens dele”.
- Foi só isso?
- Sim, só isso. Então, a mim me pareceu que ele já sabia da viagem. Quer dizer, pensando, bem, acho que os dois já tinham programado tudo, mas eu não fui avisado disso; eu não sabia de nada.
- E o capataz, saiu mesmo com vocês? Na mesma hora?
- Saiu junto com a gente, nove horas, ou quase isso, como eu já disse. Ele foi direto para a estação ferroviária, aqui do lado. Saímos pela porta lateral; antes disso, tomei o cuidado de deixar a porta da frente fechada à chave. Fechei por dentro. Descemos então pela rua lateral até a esquina debaixo. Na frente de casa nos separamos, ele seguiu para a esquerda, ara a estação ferroviária; nós fomos para o outro lado, para o Mercado Municipal. Depois não tornamos a vê-lo de novo, ainda mais nessa neblina fechada que está hoje.?
- Que caminho fizeram, por onde foram?
- Contornamos a praça, passamos pela esquina da Prefeitura. Dali, seguimos para a direita, para o Mercado.
- E sabe se o capataz pegou o trem para São Paulo?
- Acho que sim, ainda faltavam uns quinze ou vinte minutos para a partida; então, ele ainda tinha tempo suficiente para embarcar no trem das nove e quinze.
Pensativo, Guilherme perguntou:
- Ele teria algum motivo para matar o patrão? Alguma briga recente, alguma birra, rixa, coisas assim?
- Não, que eu saiba não tinha nada. Bem, aquele lá – acrescentou, com alguma maldade – é mestre no tiro, isso ele é, não erra um. Mas, com as mãos cheias de dedos que ele tem, não é bom para as facas, eu suponho...
Desprezamos a expressão irônica, jocosa, que indicava alguém que se atrapalha com as próprias mãos.  E, pensei, depois teremos meios de confirmar os passos do capataz.
Guilherme me olhou com olhos de desconfiado, como quem não estava acreditando muito naquela história. E, olhando para o caseiro:
- Quem é que cuida dos negócios fora da cidade? Que eu saiba, a família ainda tem alguns interesses em São Paulo, não é?
- Sim, tem negócios lá. Pouca coisa, é bem verdade, mas ainda tem uma ou outra pendência para ser resolvida. O patrão, já faz tempo, não sai mais da cidade, quer dizer: ou vai o Júnior, com o carro da família, ou então vai o capataz, de trem. Nos últimos tempos, com os negócios minguados, o capataz dá conta de fazer o que tem que ser feito, sozinho. Não sei exatamente o que ele faz, mas o Júnior não tem ido a negócios, só a passeio.
- E essas viagens, ele costuma fazê-las aos domingos? Ou, por acaso, em outros dias da semana? As segundas-feiras são mais propícias para saídas a negócios, não acha?
- Pois é, senhor. Ele toma o trem da segunda-feira, sempre. Que eu me lembre, nunca embarcou aos domingos.
Como eu já havia notado, ninguém ali, exceto o filho, pranteava a morte do Dr. Assis; antes, pelo contrário, parecia que um alívio pairava no ar, a julgar pelos semblantes dos empregados, que em nada lembravam clima de velório. Havia a esperada apreensão pelos fatos violentos ocorridos, tanto é que a cozinheira e a camareira tremiam de medo, por certo assustadas com a brutalidade do crime; mas não se demonstravam pesarosas e nem havia em seus gestos outros sentimentos que seriam próprios da ocasião; em resumo, nada de lamúrias.
Já o caseiro, este transpirava emoção; era evidente que tentava, a todo custo, mostrar-se controlado, mas em vão. E ficava mais alterado ainda quando percebia que as suspeitas poderiam seguir em sua direção.
Dispensamos os empregados e fomos ter com o filho; a conversa foi na sala de estar, deixando a cozinha livre para os afazeres do almoço.
O caseiro logo saiu; foi para o necrotério. Levou calça de tergal, camisa branca, paletó e gravata para o defunto.

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