Confissões à beira do Rio Vermelho
Tenho um gosto particular pelas
cidades histórias brasileiras. Serro Frio, Diamantina, Tiradentes, enfim, de
todas guardo excelentes lembranças. E o que dizer da aprazível e ensolarada Goyás Velho? Terra de antigas minerações, explorada depois que os diamantes
se esgotaram nas minas gerais, é cercada por uma belíssima serra; ao
entardecer, o sol lhe deita uma cor dourada, brilhante, encantadora.
Guardo boas recordações da cidade, com as construções seculares ainda bem preservadas pelo Patrimônio Histórico; ruas, largas, e cobertas com enormes pedras brutas e irregulares, que
fazem o sofrimento dos caminhantes inexperientes.
A Delegacia era bem mobiliada, de pé
direito alto, e funcionava em um prédio de fachada colonial, às margens do
leito pedregoso do Rio Vermelho. O sol quente de uma tarde de verão nos
sufocava; o vai e vem do ventilador não era suficiente para amainar nosso
desconforto.
Foi ali que ouvimos os pormenores de
uma história mirabolante. Demonstrando uma boa dose de tristeza, como que se
sentindo fracassado em diversos aspectos de sua existência, o capataz
contou-nos um resumo dos últimos tempos da vida do Coronel. Disse-nos que o Dr.
Assis andava muito preocupado com a derrocada financeira e não encontrava saída
para a situação; a quebra seria só uma questão de tempo, pelo rumo que as
coisas tomavam na vida do outrora próspero fazendeiro.
Tudo começou com algumas dívidas de
jogo, ainda da época em que o pano verde fazia
a fama da estância, que o fazendeiro não conseguiu saldar – em parte, porque
achava que tinha sido vítima de um crupiê
trapaceiro, que era famoso pelas artimanhas e desonestidade, e em parte porque,
achando-se invencível na roleta, nunca se conformava com a derrota nos salões
de jogo. Aliás, nutria a esperança, ou mesmo a convicção, de que a roleta ainda
o salvaria do desastre que se avizinhava.
O Dr. Assis passou muitos anos envolvido
em várias disputas pessoais que, pelas duvidosas razões dos contendores, não
foram jamais levadas para a justiça. Além disso, andou a fazer investimentos
temerários em São Paulo, esquecendo-se que as suas habilidades negociais
estavam no campo, não na cidade.
Nos últimos tempos de vida, o que mais
afligia o Coronel era uma dívida muito grande que um banco lhe cobrava em processo
judicial; depois de muitas demoras, esse processo , finalmente, se encaminhava
para decisão final. E não lhe restava alternativa: ou pagaria a dívida ou,
então, teria que oferecer bens em pagamento, não tinha mais como segurar as
coisas.
Do grande latifúndio de outrora, já
pouco restava. Foi então que, por orientações do seu advogado, ele ofereceu
alguns lotes de esmeraldas como garantia da dívida e já era chegada a hora de
apresentá-las em juízo, para avaliação e venda em leilão. Todavia, ainda
relutante e não querendo se desfazer do patrimônio, o Coronel traçou um plano
que lhe parecia perfeito: um roubo simulado, mas espalhafatoso e que não deixaria
sinais e nem testemunhas, em que o ladrão
levaria as gemas.
Claro, cabia, evidentemente, ao
administrador fazer essa parte suja no negócio, mediante promessa de recompensa
posterior. Tudo foi ajustado, de tal forma que, com a repercussão que o caso
certamente alcançaria na sociedade, o Coronel justificaria a não apresentação
das pedras em juízo; ao mesmo tempo, ficaria com as gemas bem guardadas, em
segurança, num recanto qualquer da fazenda.
Foi assim, portanto, que o roubo das
esmeraldas foi minuciosamente combinado entre os dois. Os mínimos detalhes
foram previstos para evitar que a ação pudesse deixar pistas, ou sinais da
combinação.
No domingo acertado para a execução do
plano, o Coronel chamou o caseiro e lhe deu as ordens já conhecidas, fazendo
com que todos os empregados se ausentassem do casarão.
Foi então que o capataz, depois de ter
saído junto com os outros empregados, como se fosse à estação de trem, despistou
os colegas de trabalho e voltou ao casarão; encontrou o Coronel no quarto, em
pé ao lado da cama, que já o esperava com os pacotes de esmeraldas nas mãos:
- Rápido com isso rapaz! E preste bem
atenção: estoure a porta dos fundos, de fora para dentro, com um pontapé; depois,
esconda esses quatros sacos no paiol da fazenda, ainda hoje. Não volte mais
para cá, que eu dou um jeito de explicar a sua ausência. Anda logo, não perde
tempo ...
Entretanto, para surpresa do Coronel, o
seu empregado já vinha acalentando um outro plano, em bem guardado segredo,
desde a noite anterior ao crime. É que, no sábado, quando foi ao casarão levar
os alimentos trazidos da fazenda, o capataz, um eterno apaixonado pela camareira,
dela tomou um tremendo fora: revelando que estava grávida do Coronel, a bela moça
rompeu o namoro. Fez isso porque sabia que logo a barriga começaria a despontar
e não teria mais como esconder a sua situação.
Ouvindo isso, Guilherme perguntou,
surpreso:
- Então o pai da criança não é você?
- Não, não sou. Se fosse, eu casaria
com ela, que era o meu sonho. Nunca a abandonaria, ainda mais ela estando
grávida.
- E você não sabia que sua namorada
tinha um caso com o Coronel?
- Não, também nunca soube disso. E se
alguém em casa sabia, não me contou. Eu sinceramente não esperava por isso,
doutor.
- Então, quando ela nos disse que o
pai da criança era você, ela estava mentindo?
- Certamente, doutor. Ela ficou muito envergonhada,
jamais contaria para alguém que o pai era o Coronel.
Transtornado e sentindo-se ferido em
seus brios, o capataz convenceu-se de que tamanha afronta não poderia ficar
impune; resolveu, pois, que, na manhã seguinte, poderia não apenas simular um
roubo, mas efetivamente matar o patrão. Vingaria a perda do grande amor da sua
vida e, de quebra, fugiria com as pedras preciosas, enriquecendo de vez longe das
terras de origem. Quer dizer, viveria sozinho, sem a mulher amada, porém rico;
ao menos isso, pensou. Talvez um misto de ganância e de vingança, ele próprio admitia.
Sem que o Coronel desconfiasse de
nada, executou a primeira parte do plano conforme haviam combinado, tudo com
meticuloso cuidado: saiu de casa junto com os outros empregados, simulando a ida
para a estação, a fim de empreender viagem para São Paulo. Todavia, escondido
sob a forte neblina que cobria a cidade e se certificando que o caseiro, a camareira
e a cozinheira se dirigiam para os lados do Mercado Municipal, retornou ao
casarão. Com a sua própria chave, entrou pela porta dos fundos:
- Pelos fundos, é fácil transitar
entre o casarão e a Mogyana; e dá para passar escondido, pelo pequeno morro de
pedra e passando por detrás da rotunda, sem ser visto por ninguém. É mais
rápido e mais seguro que pelas outras portas e – esclareceu.
- E não tinha medo da volta repentina
dos outros empregados?
- Tinha não; a ordem era para que
fossem todos juntos – e a cozinheira, fora de forma, menos andava e mais se arrastava
pelas ruas; portanto, eu tinha tempo suficiente para fazer o que fiz.
- Você dormiu no casarão?
- Não, dormi na fazenda; no domingo de
manhã eu voltei para a cidade.
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