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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Livro - Reverso inclinado. Capítulo 17. Confissões à beira do Rio Vermelho


Confissões à beira do Rio Vermelho

Tenho um gosto particular pelas cidades histórias brasileiras. Serro Frio, Diamantina, Tiradentes, enfim, de todas guardo excelentes lembranças. E o que dizer da aprazível e ensolarada Goyás Velho? Terra de antigas minerações, explorada depois que os diamantes se esgotaram nas minas gerais, é cercada por uma belíssima serra; ao entardecer, o sol lhe deita uma cor dourada, brilhante, encantadora.
Guardo boas recordações da cidade, com as construções seculares ainda bem preservadas pelo Patrimônio Histórico; ruas, largas, e cobertas com enormes pedras brutas e irregulares, que fazem o sofrimento dos caminhantes inexperientes.

A Delegacia era bem mobiliada, de pé direito alto, e funcionava em um prédio de fachada colonial, às margens do leito pedregoso do Rio Vermelho. O sol quente de uma tarde de verão nos sufocava; o vai e vem do ventilador não era suficiente para amainar nosso desconforto.
Foi ali que ouvimos os pormenores de uma história mirabolante. Demonstrando uma boa dose de tristeza, como que se sentindo fracassado em diversos aspectos de sua existência, o capataz contou-nos um resumo dos últimos tempos da vida do Coronel. Disse-nos que o Dr. Assis andava muito preocupado com a derrocada financeira e não encontrava saída para a situação; a quebra seria só uma questão de tempo, pelo rumo que as coisas tomavam na vida do outrora próspero fazendeiro.
Tudo começou com algumas dívidas de jogo, ainda da época em que o pano verde fazia a fama da estância, que o fazendeiro não conseguiu saldar – em parte, porque achava que tinha sido vítima de um crupiê trapaceiro, que era famoso pelas artimanhas e desonestidade, e em parte porque, achando-se invencível na roleta, nunca se conformava com a derrota nos salões de jogo. Aliás, nutria a esperança, ou mesmo a convicção, de que a roleta ainda o salvaria do desastre que se avizinhava.
O Dr. Assis passou muitos anos envolvido em várias disputas pessoais que, pelas duvidosas razões dos contendores, não foram jamais levadas para a justiça. Além disso, andou a fazer investimentos temerários em São Paulo, esquecendo-se que as suas habilidades negociais estavam no campo, não na cidade.
Nos últimos tempos de vida, o que mais afligia o Coronel era uma dívida muito grande que um banco lhe cobrava em processo judicial; depois de muitas demoras, esse processo , finalmente, se encaminhava para decisão final. E não lhe restava alternativa: ou pagaria a dívida ou, então, teria que oferecer bens em pagamento, não tinha mais como segurar as coisas.
Do grande latifúndio de outrora, já pouco restava. Foi então que, por orientações do seu advogado, ele ofereceu alguns lotes de esmeraldas como garantia da dívida e já era chegada a hora de apresentá-las em juízo, para avaliação e venda em leilão. Todavia, ainda relutante e não querendo se desfazer do patrimônio, o Coronel traçou um plano que lhe parecia perfeito: um roubo simulado, mas espalhafatoso e que não deixaria sinais e nem testemunhas, em que o ladrão levaria as gemas.
Claro, cabia, evidentemente, ao administrador fazer essa parte suja no negócio, mediante promessa de recompensa posterior. Tudo foi ajustado, de tal forma que, com a repercussão que o caso certamente alcançaria na sociedade, o Coronel justificaria a não apresentação das pedras em juízo; ao mesmo tempo, ficaria com as gemas bem guardadas, em segurança, num recanto qualquer da fazenda.
Foi assim, portanto, que o roubo das esmeraldas foi minuciosamente combinado entre os dois. Os mínimos detalhes foram previstos para evitar que a ação pudesse deixar pistas, ou sinais da combinação.
No domingo acertado para a execução do plano, o Coronel chamou o caseiro e lhe deu as ordens já conhecidas, fazendo com que todos os empregados se ausentassem do casarão.
Foi então que o capataz, depois de ter saído junto com os outros empregados, como se fosse à estação de trem, despistou os colegas de trabalho e voltou ao casarão; encontrou o Coronel no quarto, em pé ao lado da cama, que já o esperava com os pacotes de esmeraldas nas mãos:
- Rápido com isso rapaz! E preste bem atenção: estoure a porta dos fundos, de fora para dentro, com um pontapé; depois, esconda esses quatros sacos no paiol da fazenda, ainda hoje. Não volte mais para cá, que eu dou um jeito de explicar a sua ausência. Anda logo, não perde tempo ...
Entretanto, para surpresa do Coronel, o seu empregado já vinha acalentando um outro plano, em bem guardado segredo, desde a noite anterior ao crime. É que, no sábado, quando foi ao casarão levar os alimentos trazidos da fazenda, o capataz, um eterno apaixonado pela camareira, dela tomou um tremendo fora: revelando que estava grávida do Coronel, a bela moça rompeu o namoro. Fez isso porque sabia que logo a barriga começaria a despontar e não teria mais como esconder a sua situação.
Ouvindo isso, Guilherme perguntou, surpreso:
- Então o pai da criança não é você?
- Não, não sou. Se fosse, eu casaria com ela, que era o meu sonho. Nunca a abandonaria, ainda mais ela estando grávida.
- E você não sabia que sua namorada tinha um caso com o Coronel?
- Não, também nunca soube disso. E se alguém em casa sabia, não me contou. Eu sinceramente não esperava por isso, doutor.
- Então, quando ela nos disse que o pai da criança era você, ela estava mentindo?
- Certamente, doutor. Ela ficou muito envergonhada, jamais contaria para alguém que o pai era o Coronel.
Transtornado e sentindo-se ferido em seus brios, o capataz convenceu-se de que tamanha afronta não poderia ficar impune; resolveu, pois, que, na manhã seguinte, poderia não apenas simular um roubo, mas efetivamente matar o patrão. Vingaria a perda do grande amor da sua vida e, de quebra, fugiria com as pedras preciosas, enriquecendo de vez longe das terras de origem. Quer dizer, viveria sozinho, sem a mulher amada, porém rico; ao menos isso, pensou. Talvez um misto de ganância e de vingança, ele próprio admitia.
Sem que o Coronel desconfiasse de nada, executou a primeira parte do plano conforme haviam combinado, tudo com meticuloso cuidado: saiu de casa junto com os outros empregados, simulando a ida para a estação, a fim de empreender viagem para São Paulo. Todavia, escondido sob a forte neblina que cobria a cidade e se certificando que o caseiro, a camareira e a cozinheira se dirigiam para os lados do Mercado Municipal, retornou ao casarão. Com a sua própria chave, entrou pela porta dos fundos:
- Pelos fundos, é fácil transitar entre o casarão e a Mogyana; e dá para passar escondido, pelo pequeno morro de pedra e passando por detrás da rotunda, sem ser visto por ninguém. É mais rápido e mais seguro que pelas outras portas e – esclareceu.
- E não tinha medo da volta repentina dos outros empregados?
- Tinha não; a ordem era para que fossem todos juntos – e a cozinheira, fora de forma, menos andava e mais se arrastava pelas ruas; portanto, eu tinha tempo suficiente para fazer o que fiz.
- Você dormiu no casarão?
- Não, dormi na fazenda; no domingo de manhã eu voltei para a cidade.

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