O romance entre a camareira e o capataz
Na terça, a frustração já prevista de
véspera foi confirmada: o depoimento da camareira, tomado no casarão em virtude
de sua saúde visivelmente precária, nada acrescentou. Ela foi ouvida de manhã,
bem cedo; de olheiras profundas e tez pálida, confirmou o que ouvíramos na
Estação da Mogyana: o capataz viajou praticamente com a roupa do corpo, a não
ser uma camisa e roupas de baixo para uma ou duas trocas, nada mais que isso.
- Só isso de roupa? Não é pouco para
que vai ficar quatro ou cinco dias fora?
- Costume dele, fazer o que? Eu mesma
arrumei a maleta; não custava nada, não é? A matula foi preparada pela cozinheira.
- E por que você é que arrumou a
maleta dele? Ele morava aqui ou na fazenda?
- Na fazenda. Mas ele também usa um
dos quartos daqui, quando precisa, por isso tem algumas roupas na casa. Então
eu ajudei-o na dobra da camisa.
- Vocês namoram?
A pergunta, muito embora previsível,
deixou-a corada; por isso, cabisbaixa e monossilábica, respondeu:
- Sim.
Contou depois, premida pela
insistência de Guilherme, que era frequentadora habitual do footing que acontecia aos sábados e
domingos, na calçada do Cine São Luiz, que também fica na praça central, do lado
oposto ao do casarão. As moças, depois de assistirem missa, caminhavam aos
pares, de braços dados, em um longo e contínuo cordão dentro de um corredor
formado pelos homens; estes, parados, davam asas às paqueras e galanteios.
Muitos casamentos decorreram de namoros iniciados nesse motocontínuo.
Apesar de se conhecerem do casarão, os
dois nunca se falaram além do necessário para os serviços de cada um. Foi no footing que a bela morena despertou os
sentimentos do rapaz.
- Uma noite, depois de muito me olhar,
ele foi falar comigo. Eu estava com as amigas e ele insistiu em me acompanhar. aquela
noite nós começamos a namorar. Faz quase dois anos isso.
O que ela não contou, mas isso deduzimos
posteriormente, é que o namoro era para valer, não foi um romance qualquer e de
passatempo. Tinham planos de casamento, inclusive. Era fácil, pois, imaginar
que entre eles havia trocas de intimidades.
Na vastidão dos quartos do casarão,
não era só o Coronel que se deleitava com seus romances.
- E tem notícias dele? Algum telegrama,
um telefonema?
- Não. Não sei o que aconteceu; não
sei onde está.
Na sequência, o filho do Dr. Assis também
prestou depoimento; repetiu as mesmas falas do domingo, de modo que a sua
oitiva consistiu em nada mais do que a necessária composição das peças do
inquérito. Nada de importante foi colhido; suas palavras firmes e diretas nos
convenciam de sua integridade.
Como de costume, Guilherme comandou os
dois interrogatórios, que eu, de novo, datilografei, em minha Remington Rand
portátil; era uma máquina boa e de teclas macias, cujo estojo verde facilitava
muito em termos de transporte.
Guilherme considerava que não havia mais
o que ser feito e nem mais restava para ser pesquisado por ali. O que nos cabia,
a partir de então, era botar a cabeça para funcionar e ordenar as informações. Tínhamos
o suficiente com que nos divertir.
Na saída, ficamos a observar, por um
longo tempo, as habilidades do caseiro, que refazia os estragos causados no
jardim pelo movimento de pessoas ocorrido no dia do crime. Com roupas sujas e
embarreadas, primeiro refez os canteiros, movimentando a enxada com boa empunhadura.
Depois, mostrou destreza no manuseio do
canivete bem afiado, cortando alguns galhos secos de um arbusto e passou a
fazer enxertos de roseiras; cortava o cavalo
do tamanho de um palmo, mais ou menos, e nele fazia um sulco estreito e profundo,
em forma de v, por onde acomodava os
troncos das futuras plantas, amarrando-os firmemente com uma pequena tira de
borracha.
Percebendo o interesse do meu amigo, o
caseiro comentou, de passagem e despretensiosamente, que cuidaria dos jardins
enquanto lhe fosse permitido pelo filho do patrão.
- É uma homenagem que o Coronel merece;
ele gostava das roseiras em flor.
Na rua, Guilherme fez um comentário ferino:
- O homem trabalha bem com o canivete,
você viu? Quero distância.
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