No
casarão do Conde Prates
O casarão foi construído, no final do Império, pelo Conde
Prates, conhecido capitalista que fez fortuna como banqueiro e investiu bom dinheiro nas ferrovias brasileiras; muito usufruiu do casarão durante os
costumeiros passeios que fazia pelas Águas Virtuosas. Mais tarde, o imóvel foi adquirido
pelos pais do Coronel Assis, já então prósperos fazendeiros.
A cidade teve o seu apogeu na sequência da Proclamação da
República, com cassinos e hotéis que deslumbravam os visitantes, vindos de
todos os cantos do país e do mundo. Por aqui aportavam em busca dos propalados
milagres das águas sulfurosas, de propriedades medicinais.
Com o declínio das tradicionais cidades europeias, arrasadas
pelas trágicas consequências da primeira guerra mundial, muitos estrangeiros vieram
em busca dos nossos balneários e aqui encontraram um clima tipicamente europeu
e saudável; dos italianos era comum ouvir a frase qui si sana, em exclamação adequada para a salubridade dos ares locais.
Mas não era só isso que os inebriava: as diversões e atrativos culturais também
exerciam apelos eficazes, além das casas noturnas, em que imperava a jogatina
nesta estância que ficou conhecida como a cidade
do pano verde – um antro de perdições e de outras misérias da alma humana. Por sinal, certa camada mais conservadora da
população até hoje festeja o General Dutra que, na falta de capacidades
criativas e de outros melhores dotes, usou das moralidades próprias das
casernas e proibiu jogos de azar em todo o país, com perdas irreparáveis para a
pujança local.
Hoje restam poucas lembranças daquela época; fechadas as
roletas, sumiram as vedetes e os cantores, desapareceram os atores e acabaram-se
os teatros; minguadas são as atividades culturais, para melancolia do povo. Com
isso, foram-se os diversos voos diários que nos ligavam às principais cidades
do Brasil; declinaram a suntuosidade e a riqueza dos salões e dos hotéis, hoje
decadentes e apagadas sombras do fausto que já tiveram um dia.
Em matéria de diversão e de vida boêmia, consta que nossa
cidade fazia frente à antiga Capital Federal, tanto é que por aqui, depois, até
replicaram a famosa Urca carioca, com sucesso igual ou maior que a original em
termos de atrações e frequências ilustres.
O Presidente da República, Getúlio Vargas, registrou em seu
diário as constantes visitas que fez a Águas Virtuosas; vinha em busca de ajuda
médica para a esposa, Dona Darci, que aqui ficou internada para um prolongado
tratamento de saúde; e vinha também para, com a desculpa de visitar a esposa,
usufruir das confianças dadas pela esposa de um dos seus assessores: entre os
jantares oferecidos pelo Interventor do Estado e as caminhadas que fazia nos
entornos do campo de golfe, encontrava tempo suficiente para os tórridos
encontros com a sua bem amada, tantos eram os verdejantes bosques que lhes
tapavam as intimidades.
Nem mesmo a gripe espanhola, que contaminou quase um terço
da população local em pouco menos de três meses, em 1918, foi suficiente para
colocar fim à intensa diversão. É certo que os cassinos e casas de jogos
ficaram fechados durante longo tempo, enquanto perdurava a epidemia; no auge da
gripe, ninguém se arriscava a sair às ruas, não só com medo do contágio, mas
também para evitar a visão desagradável dos cadáveres que permaneciam
insepultos pelas calçadas, à espera de carroções que os recolhessem. Logo depois
de passada essa catástrofe, os salões voltaram aos brilhos de costume, onde
muita gente ainda podia ser vista com a tarja negra do luto pregada na gola dos
paletós ou nas mangas das camisas brancas.
Era natural, portanto, que a área central da cidade
fervilhasse, durante o dia, nos cafés e restaurantes, e durante a noite, nas casas
de diversões e espetáculos, em todas as épocas do ano; nas férias de meio e de
fim de ano, o movimento só fazia aumentar.
Ainda agora quem visita o casarão fica perplexo com sua
amplitude: escadas de madeira em seu interior nos levam para um sem número de cômodos
que se interligam, em um infindável passa de lá para cá e daqui para lá, sem
que tenhamos tempo de adivinhar se aqui é um quarto, se ali é uma sala, enfim,
mal se diferencia um espaço do outro. Mais parece que quartos e salas, tanto no
pavimento superior quanto no inferior, vão se ligando por portas e passagens ao
longo da comprida construção, numa sequência tal que até parece que seriam
dispensáveis os seus longos e sombrios corredores centrais. Embora decadente e
sem conservação adequada, ainda dá mostras do portento que foi um dia.
Dezenas de janelas de madeira, tipo venezianas, são contadas
em cada uma de suas laterais. Na frente, virada para a praça central, fulgura monumental
e destacada varanda em estilo neoclássico, com gradil de ferro fundido na
Inglaterra e de lá especialmente embarcado para o Conde Prates; dali se
vislumbra, ao longe, a bela cordilheira que emoldura a cidade.
Foi nessa residência que entramos, no final da manhã daquele
domingo. Os móveis eram poucos e já gastos pelo uso: uma cama de casal ou duas
de solteiro, mais guarda-roupa e mesa de cabeceira onde seriam os quartos;
quatro cadeiras, mesa de centro e pequeno aparador onde seriam as salas. Nos
corredores, quatro ou cinco aparadores guarnecidos com vasos de plantas plásticas sobre toalhas bordadas com motivos florais.
No porão, um misto de abandono e desleixo, mas com o trivial:
móveis velhos, alguns quebrados e já inservíveis, cobertos de poeira e amontoados
aleatoriamente, sem nada que se aproveitasse. Nem é necessário falar da
insalubridade do ambiente, úmido como todos os porões da cidade, onde parece
que tudo embolora e apodrece pela constante umidade que sobe pelas paredes e
insiste em manchar pinturas e derrubar reboques.
A inevitável multidão de curiosos já se fazia presente, apesar do
frio intenso e da chuva que continuava a cair. Ainda na calçada, atento a tudo,
Guilherme, um tanto desanimado, resmungava:
- Com essa aglomeração, marcas de sapatos por toda parte,
como encontrar pegadas do assassino? Ou foi gente da própria casa ou, então,
vamos ter muitas dificuldades nesse caso.
O imóvel fica numa parte baixa e plana da área central da
cidade, bem diante da confluência dos dois pequenos rios que se unem na imensa
praça – um deles é o que desce desde lá da minha casa; o outro vem quase que do
lado oposto. Ambos se encontram na frente do casarão e formam como que um
ípsilon, misturando suas águas claras e suaves numa só corrente.
No lado direito do casarão, havia um terreno baldio, que fazia
parte da propriedade: hoje está ocupado por construção, mas naquela época era inteiramente
aberto, com mato rasteiro. Por ele havia uma trilha, que o atravessava, desde a
lateral da residência até a Estação Ferroviária, que fica exatamente ao lado,
em imóvel contíguo. Com tanta gente entrando e saindo, do terreno para a rua e
da rua para o terreno, é de se imaginar a quantidade de barro e lama que se
espalhara pelo entorno.
A majestosa construção fica de esquina, de maneira que do
seu lado esquerdo há uma ruela, estreita e em declive, que termina bem na praça
em frente do casarão. Além da porta principal, há ainda duas outras: uma nos
fundos, praticamente sem uso porque o pouco que sobrou do terreno termina num
íngreme barranco de pedras; a outra fica justamente na lateral esquerda, e por
ela se tem acesso à ruela; esta última passagem era normalmente usada pelos
empregados da casa.
Antes de entrarmos, tomamos o cuidado de lavar nossas botas
nas águas acumuladas no meio-fio. O delegado, Dr. Alberto Dias, correu ao nosso
encontro – bem, para ser sincero, ele correu ao encontro do meu amigo Guilherme,
com jeito de quem pede socorro. O que, afinal, era compreensível, porque o Coronel
era nada mais nada menos do que o senhor do lugar.
Leitura é alimento e como tal há que ser saboreada. Hoje, paro por aqui.
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