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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

terça-feira, 14 de julho de 2020

Livro - Reverso inclinado. Capítulo 8. Ouvindo o filho do Coronel


Ouvindo o filho do Coronel

Duas descobertas eram dignas de nota: primeiro, as idas e vindas do capataz, incluindo uma viagem aparentemente fora das rotinas; depois, a inusitada e absolutamente desnecessária evacuação da casa, sob o comando do caseiro. E duas questões consumiriam nossas energias dali por diante em primeiro lugar, de quem veio a ordem para que todos saíssem da casa? E qual o motivo para a mudança nas rotinas do capataz?

Entre a conversa com o caseiro e a conversa com Assis Júnior, Guilherme e eu trocamos algumas ideias, longe de todos. Ao contrário do que normalmente acontecia nessas ocasiões, em que tínhamos mais dúvidas do que respostas, meu amigo pôs-se a falar do caso. Estranhei isso, até porque ele tinha suas manias: por exemplo, ficava absolutamente calado, sem comentários precipitados; preferia concluir as investigações para só depois fazer conjecturas; lógico, eu respeitava essa atitude, nem poderia ser diferente.
Dizia ele:
- Numa primeira análise, meu caro, é possível que o assassino seja o caseiro: para conseguir o seu intento, inventou a ordem do patrão e, assim, conseguiu afastar as duas colegas de trabalho da cena do crime; inventou uma boa desculpa sem que a cozinheira e a camareira suspeitassem de qualquer coisa. Quanto ao capataz, nenhum esforço foi necessário, pois a sua ausência forçada, ainda que inesperada, se ajustava perfeitamente aos seus planos.
- Então – perguntei – ele estaria mentindo para nós? Quer dizer, não haveria ordens do patrão para desocupar a casa?
- Presumo que não. Acho que ao menos uma parte da história dele é mentirosa. A parte verdadeira da história é a da viagem daquele que foi para São Paulo: as empregadas confirmaram isso, então não temos porque duvidar, ao menos por enquanto. A parte mentirosa fica por conta da saída dos empregados: sabendo que a viagem do capataz era um fato consumado, ele aproveitou para inventar as ordens de compras, conseguindo, com isso, tirar todos os demais empregados do casarão. Lembre-se que o patrão não falava com os outros empregados, certo? Bem, depois, foi fácil tornar à casa vazia, escondido, e cometeu o assassinato.
Eu concordei com aquele raciocínio.
- Sim, parece que tem lógica. Mas teria algum motivo para isso? Seria alguma mágoa, alguma briga? Queria roubar algum objeto, algum valor, ainda não percebido pelo filho, ou pelos empregados?
- Isso eu também não sei, meu caro. Vamos investigar com calma que a gente descobre tudo. Vamos lá, que ele nos espera.
Reencontramos o rapaz, acomodado no sofá da sala. Estava inconsolável; prometia vingança, alternando choro com raiva. Geralmente são os filhos mais novos que se apegam aos pais com laços mais fortes; por isso, sentem mais a morte deles. Nesse caso, não tínhamos como comparar a reação dos dois.
O delegado se postou ao lado dele, tentando reconfortá-lo.
Eventuais suspeitas sobre esse moço foram afastadas de plano: ficou claro que só chegou ao casarão depois do crime. Ele veio com a Rural Willys, carro mais rústico que era usado no percurso entre cidade e a fazenda. Quando da nossa chegada, tivemos a oportunidade de vê-la estacionada na frente do casarão: a chuva fizera escorrer um pouco da lama, descobrindo parcialmente o bonito bicolor azul e branco do veículo; do retrovisor interno pendia um Mug[1].
Assis Júnior vivia na fazenda; veio para a cidade, como de costume, para o almoço dominical no casarão.
Na conversa informal que tivemos, ali na sala de estar, pouco acrescentou:
- Vim direto da fazenda; cheguei um pouquinho depois dos empregados, que voltaram das compras. Quem me recebeu foi a camareira, muito nervosa e assustada.
O moço era solteiro e bem-apessoado; ao que consta, tinha vida recatada; a austeridade com que fora criado deixou reflexos sobre a sua pessoa, como uma aura capaz de afastá-lo do convívio com os rapazes de sua idade.
Perguntado sobre o capaz, Assis Júnior nada soube dizer sobre ele; nem mesmo sabia se ele tinha dormido na fazenda:
- De sábado de noite, ele volta tarde. Fica aqui junto como pessoal, eu nem vejo ele chegar. Hoje cedo eu vi que o Jeep não estava lá, mas nem dei atenção para isso.
- E o seu irmão, que está nos Estados Unidos? Algum motivo especial para não viver no Brasil?
Foi meio sem jeito que Assis Júnior nos respondeu:
- Brigas com o pai. Sabe como é isso, criançada que não aceita a vigilância paterna. Esse é o caso dele; o pai sempre é, quer dizer, era, muito severo, nunca deixava a gente passear por aí à vontade. E o meu irmão não queria controle nenhum, entende? Sempre foi meio rebelde, queria cabelos compridos, barba, roqueiro, essas coisas de hippie, entende?
- E brigava com o pai, por causa disso?
- Muito, ele não aceita isso. Nunca aceitou. Sempre tinha discussão entre os dois. Até que ganhou idade e foi embora. Foi para Nova Iorque há dois anos, em 1968; disse que era só para passar uns dias e que logo voltaria. Quer dizer, não era para ficar lá. Porém, travou algumas amizades com um pessoal da contracultura, leu alguns beatniks, leu Kerouac, Allen Ginsberg. Acabou indo, no ano passado, por mero acaso, a uma fazenda em que aconteceria um festival. Bom, para resumir a história, ele acabou no meio do Festival de Woodstock, nada mais, nada menos que isso.
Meu amigo exultou:
- Caramba! Seu irmão viu aquilo tudo?
- Pois é, que sorte a dele, né? Mas, daí, advinha o que aconteceu?
- Já imagino: não voltou mais, é claro!
- É isso mesmo, não quis mais saber do Brasil; está vivendo numa comunidade psicodélica, na zona rural de Nova Iorque, perto da fazenda em que foi realizado aquele festival. Deve estar feliz, eu creio.
- E vocês mantêm contato ainda hoje?
- Sim, mas pouco. Vez ou outra ele escreve, ou telefona; diz que lá eles são adeptos do amor-livre, fazem passeatas contra a Guerra do Vietnã, fala em make love, not war, essas coisas que a gente vê nas revistas e na televisão. Mas o nosso contato é pequeno, não passa disso.
E arrematou, com tristeza no olhar:
- Tenho saudades dele, é boa gente.
- E com o pai, ele conversava?
- Com o pai ele nunca mais falou; acho até que ele não volta mais para cá. Acho que nem se readaptaria aqui.
- Mudando de assunto: como você ficou sabendo da morte do seu pai?
- Quando cheguei para almoçar, agora há pouco. Cheguei quase junto com os empregados, um pouquinho só depois deles.
 Suas informações pareciam sinceras; quando entrou no casarão é que ficou sabendo dos detalhes da morte do pai: o corpo acabara de ser encontrado, com os evidentes sinais de ferimentos pelo peito. Foi ele, inclusive, que ligou para o delegado.
- Depois eu providenciei uns meninos, que levaram o bilhete do Dr. Alberto para você.  
- O seu pai tinha inimigos? Que ele era de briga, isso eu sei, mas tinha alguma coisa mais séria?
Não, não sabia de nenhuma inimizade em especial, que pudesse levar a esse fim trágico. Eu digo inimizade em especial porque, em verdade, as desavenças eram muitas, em todas as partes – principalmente agora, nos últimos tempos, quando os negócios começaram a ruir de vez. Havia muitas dívidas para saldar, com bancos e com agiotas; e, o que é pior, com o patrimônio se deteriorando a olhos vistos. A fazenda quase não dava mais rendimentos e estavam quase que em estado de insolvência.
- Vocês ainda têm empregados na fazenda?
- Hoje são poucos, alguns trabalhadores avulsos, para capina, colheita do café e serviços gerais. Antigamente tinha colônia, muita gente residia lá.
Foi daí que, bem no meio destas constatações, o jovem desabafou, respirando fundo:
- A situação está mesmo complicada. O que pode nos salvar, ao menos em alguns processos que têm aí no fórum, são as esmeraldas e as barras de ouro. Elas valem muito, uma boa nota.
Ouvindo isso, de pronto Guilherme Holders perguntou:
- Esmeraldas? Que esmeraldas são essas? Onde estão?
- Sim, alguns lotes de esmeraldas que o pai tem, que ele guarda há tempos. Estão lá em cima na gaveta do...
Mas não terminou a frase. Em sobressalto, voou para o quarto do pai, já pressentido o pior: no fundo do guarda-roupa, onde normalmente ficavam guardados a chave, em uma gaveta que foi acrescentada ao móvel, nem sinal dos oito – sim, garantia ele, oito pacotes de plástico duro, com um quilo, mais ou menos, de esmeraldas lapidadas em cada um deles, da melhor qualidade e de boa procedência!
- Isso vale muito dinheiro! Cadê elas? Cadê? – gritava Assis Júnior, estupefato e desesperado ao constatar o sumiço de tão precioso tesouro.
Bom, enfim, alguma coisa começava a fazer sentido; quer dizer, ao menos a partir daquele instante era possível dizer que o assassino tinha algo em mira: as valiosas esmeraldas.
No dizer de Júnior, ali estava o único patrimônio com que contavam para pagar alguns credores. Agora, com o desfalque, pouco, ou quase nada, restava para se fazer.
- A legitimidade das esmeraldas está certificada – garantiu-nos o filho – por um perito da capital paulista; em cada pacote, está lá o laudo, datado e assinado. Coisa fina, material puro; não tenho muita noção do valor delas, mas acho que ajudariam muito.
Apesar das intensas buscas, o material não foi encontrado; ouvidos separadamente, os empregados disseram que nada sabiam sobre as pedras, que nunca tinham ouvido qualquer menção sobre elas. Assis Júnior achou isso plausível:
- O pai sempre foi muito discreto sobre esse assunto, pois temia justamente ser roubado.
Recentemente, o pai teve que oferecê-las, em um processo judicial, como forma de garantia de uma dívida de grandes proporções. Como não havia outros bens, teve que lançar mão delas.
O que ficamos sabendo, também, foi que o juiz do processo, receoso pela responsabilidade que assumiria pela guarda daquele material, tomou uma prudente decisão: determinou que o próprio devedor ficasse com elas, como depositário.
- Que lástima! E agora isso também? Não é possível! – dizia o filho, cada vez mais nervoso com a situação.
Pouco ou quase nada nos restava a fazer no casarão; demos uma rápida examinada no Jeep usado pelo capataz, que estava na garagem, coberto de barro; nada encontramos digno de nota. 
A chuva, embora um pouco mais amena, ainda continuava.
- Vem um belo inverno por aí, meu caro; vai tirando as cobertas do armário...
- Sim, Guilherme, e dos brabos, pode ter certeza.
Fomos para o pátio da estação, em busca de uma charrete. Guilherme almoçou comigo, já quase no final da tarde.


[1] O cantor Wilson Simonal (1938 – 2000) aproveitou o sucesso que fez no final dos anos 1960 e lançou o Mug, um pequeno boneco de pano que retratava ele próprio; através de um cordão, ficava pendurado nos retrovisores internos dos carros.

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