Ouvindo o filho do Coronel
Duas descobertas eram dignas de nota: primeiro,
as idas e vindas do capataz, incluindo uma viagem aparentemente fora das
rotinas; depois, a inusitada e absolutamente desnecessária evacuação da casa, sob
o comando do caseiro. E duas questões consumiriam nossas energias dali por
diante em primeiro lugar, de quem veio a ordem para que todos saíssem da casa?
E qual o motivo para a mudança nas rotinas do capataz?
Entre a conversa com o caseiro e a
conversa com Assis Júnior, Guilherme e eu trocamos algumas ideias, longe de
todos. Ao contrário do que normalmente acontecia nessas ocasiões, em que
tínhamos mais dúvidas do que respostas, meu amigo pôs-se a falar do caso.
Estranhei isso, até porque ele tinha suas manias: por exemplo, ficava
absolutamente calado, sem comentários precipitados; preferia concluir as
investigações para só depois fazer conjecturas; lógico, eu respeitava essa
atitude, nem poderia ser diferente.
Dizia ele:
- Numa primeira análise, meu caro, é
possível que o assassino seja o caseiro: para conseguir o seu intento, inventou
a ordem do patrão e, assim, conseguiu afastar as duas colegas de trabalho da
cena do crime; inventou uma boa desculpa sem que a cozinheira e a camareira
suspeitassem de qualquer coisa. Quanto ao capataz, nenhum esforço foi necessário,
pois a sua ausência forçada, ainda que inesperada, se ajustava perfeitamente aos
seus planos.
- Então – perguntei – ele estaria
mentindo para nós? Quer dizer, não haveria ordens do patrão para desocupar a
casa?
- Presumo que não. Acho que ao menos
uma parte da história dele é mentirosa. A parte verdadeira da história é a da
viagem daquele que foi para São Paulo: as empregadas confirmaram isso, então não
temos porque duvidar, ao menos por enquanto. A parte mentirosa fica por conta
da saída dos empregados: sabendo que a viagem do capataz era um fato consumado,
ele aproveitou para inventar as ordens de compras, conseguindo, com isso, tirar
todos os demais empregados do casarão. Lembre-se que o patrão não falava com os
outros empregados, certo? Bem, depois, foi fácil tornar à casa vazia,
escondido, e cometeu o assassinato.
Eu concordei com aquele raciocínio.
- Sim, parece que tem lógica. Mas teria
algum motivo para isso? Seria alguma mágoa, alguma briga? Queria roubar algum
objeto, algum valor, ainda não percebido pelo filho, ou pelos empregados?
- Isso eu também não sei, meu caro.
Vamos investigar com calma que a gente descobre tudo. Vamos lá, que ele nos
espera.
Reencontramos o rapaz, acomodado no
sofá da sala. Estava inconsolável; prometia vingança, alternando choro com
raiva. Geralmente são os filhos mais novos que se apegam aos pais com laços
mais fortes; por isso, sentem mais a morte deles. Nesse caso, não tínhamos como
comparar a reação dos dois.
O delegado se postou ao lado dele,
tentando reconfortá-lo.
Eventuais suspeitas sobre esse moço foram
afastadas de plano: ficou claro que só chegou ao casarão depois do crime. Ele veio com a Rural
Willys, carro mais rústico que era usado no percurso entre cidade e a fazenda.
Quando da nossa chegada, tivemos a oportunidade de vê-la estacionada na frente do
casarão: a chuva fizera escorrer um pouco da lama, descobrindo parcialmente o
bonito bicolor azul e branco do veículo; do retrovisor interno pendia um Mug[1].
Assis Júnior vivia na fazenda; veio
para a cidade, como de costume, para o almoço dominical no casarão.
Na conversa informal que tivemos, ali na
sala de estar, pouco acrescentou:
- Vim direto da fazenda; cheguei um
pouquinho depois dos empregados, que voltaram das compras. Quem me recebeu foi
a camareira, muito nervosa e assustada.
O moço era solteiro e bem-apessoado; ao
que consta, tinha vida recatada; a austeridade com que fora
criado deixou reflexos sobre a sua pessoa, como uma aura capaz de afastá-lo do
convívio com os rapazes de sua idade.
Perguntado sobre o capaz, Assis Júnior
nada soube dizer sobre ele; nem mesmo sabia se ele tinha dormido na fazenda:
- De sábado de noite, ele volta tarde.
Fica aqui junto como pessoal, eu nem vejo ele chegar. Hoje cedo eu vi que o
Jeep não estava lá, mas nem dei atenção para isso.
- E o seu irmão, que está nos Estados
Unidos? Algum motivo especial para não viver no Brasil?
Foi meio sem jeito que Assis Júnior
nos respondeu:
- Brigas com o pai. Sabe como é isso,
criançada que não aceita a vigilância paterna. Esse é o caso dele; o pai sempre
é, quer dizer, era, muito severo, nunca deixava a gente passear por aí à
vontade. E o meu irmão não queria controle nenhum, entende? Sempre foi meio
rebelde, queria cabelos compridos, barba, roqueiro, essas coisas de hippie, entende?
- E brigava com o pai, por causa
disso?
- Muito, ele não aceita isso. Nunca
aceitou. Sempre tinha discussão entre os dois. Até que ganhou idade e foi
embora. Foi para Nova Iorque há dois anos, em 1968; disse que era só para
passar uns dias e que logo voltaria. Quer dizer, não era para ficar lá. Porém, travou
algumas amizades com um pessoal da contracultura, leu alguns beatniks, leu Kerouac, Allen Ginsberg. Acabou
indo, no ano passado, por mero acaso, a uma fazenda em que aconteceria um
festival. Bom, para resumir a história, ele acabou no meio do Festival de Woodstock,
nada mais, nada menos que isso.
Meu amigo exultou:
- Caramba! Seu irmão viu aquilo tudo?
- Pois é, que sorte a dele, né? Mas,
daí, advinha o que aconteceu?
- Já imagino: não voltou mais, é claro!
- É isso mesmo, não quis mais saber do
Brasil; está vivendo numa comunidade psicodélica, na zona rural de Nova Iorque,
perto da fazenda em que foi realizado aquele festival. Deve estar feliz, eu
creio.
- E vocês mantêm contato ainda hoje?
- Sim, mas pouco. Vez ou outra ele escreve,
ou telefona; diz que lá eles são adeptos do amor-livre, fazem passeatas contra
a Guerra do Vietnã, fala em make love,
not war, essas coisas que a gente vê nas revistas e na televisão. Mas o
nosso contato é pequeno, não passa disso.
E arrematou, com tristeza no olhar:
- Tenho saudades dele, é boa gente.
- E com o pai, ele conversava?
- Com o pai ele nunca mais falou; acho
até que ele não volta mais para cá. Acho que nem se readaptaria aqui.
- Mudando de assunto: como você ficou
sabendo da morte do seu pai?
- Quando cheguei para almoçar, agora há
pouco. Cheguei quase junto com os empregados, um pouquinho só depois deles.
- Depois eu providenciei uns meninos,
que levaram o bilhete do Dr. Alberto para você.
- O seu pai tinha inimigos? Que ele
era de briga, isso eu sei, mas tinha alguma coisa mais séria?
Não, não sabia de nenhuma inimizade em
especial, que pudesse levar a esse fim trágico. Eu digo inimizade em especial porque, em verdade, as desavenças eram
muitas, em todas as partes – principalmente agora, nos últimos tempos, quando
os negócios começaram a ruir de vez. Havia muitas dívidas para saldar, com
bancos e com agiotas; e, o que é pior, com o patrimônio se deteriorando a olhos
vistos. A fazenda quase não dava mais rendimentos e estavam quase que em estado
de insolvência.
- Vocês ainda têm empregados na
fazenda?
- Hoje são poucos, alguns
trabalhadores avulsos, para capina, colheita do café e serviços gerais.
Antigamente tinha colônia, muita gente residia lá.
Foi daí que, bem no meio destas constatações,
o jovem desabafou, respirando fundo:
- A situação está mesmo complicada. O
que pode nos salvar, ao menos em alguns processos que têm aí no fórum, são as
esmeraldas e as barras de ouro. Elas valem muito, uma boa nota.
Ouvindo isso, de pronto Guilherme Holders
perguntou:
- Esmeraldas? Que esmeraldas são
essas? Onde estão?
- Sim, alguns lotes de
esmeraldas que o pai tem, que ele guarda há tempos. Estão lá
em cima na gaveta do...
Mas não terminou a frase. Em
sobressalto, voou para o quarto do pai, já pressentido o pior: no fundo do
guarda-roupa, onde normalmente ficavam guardados a chave, em uma gaveta que foi
acrescentada ao móvel, nem sinal dos oito – sim, garantia ele, oito pacotes
de plástico duro, com um quilo, mais ou menos, de esmeraldas lapidadas em cada
um deles, da melhor qualidade e de boa procedência!
- Isso vale muito dinheiro! Cadê elas? Cadê? – gritava Assis Júnior, estupefato e desesperado ao constatar o sumiço de tão
precioso tesouro.
Bom, enfim, alguma coisa
começava a fazer sentido; quer dizer, ao menos a partir daquele instante era
possível dizer que o assassino tinha algo em mira: as valiosas esmeraldas.
No dizer de Júnior, ali estava o único
patrimônio com que contavam para pagar alguns credores. Agora, com o desfalque,
pouco, ou quase nada, restava para se fazer.
- A legitimidade das esmeraldas está certificada
– garantiu-nos o filho – por um perito da capital paulista; em cada
pacote, está lá o laudo, datado e assinado. Coisa fina, material puro; não tenho muita noção
do valor delas, mas acho que ajudariam muito.
Apesar das intensas buscas, o material não foi encontrado; ouvidos separadamente, os empregados disseram que nada sabiam sobre as pedras, que nunca tinham ouvido qualquer menção sobre elas. Assis Júnior
achou isso plausível:
- O pai sempre foi muito discreto
sobre esse assunto, pois temia justamente ser roubado.
Recentemente, o pai teve que oferecê-las,
em um processo judicial, como forma de garantia de uma dívida de grandes
proporções. Como não havia outros bens, teve que lançar mão delas.
O que ficamos sabendo, também, foi que
o juiz do processo, receoso pela responsabilidade que assumiria pela guarda daquele
material, tomou uma prudente decisão: determinou que o próprio devedor ficasse
com elas, como depositário.
- Que lástima! E agora isso também? Não
é possível! – dizia o filho, cada vez mais nervoso com a situação.
Pouco ou quase nada nos restava a
fazer no casarão; demos uma rápida examinada no Jeep usado pelo capataz, que
estava na garagem, coberto de barro; nada encontramos digno de nota.
A chuva, embora um pouco mais amena, ainda
continuava.
- Vem um belo inverno por aí, meu
caro; vai tirando as cobertas do armário...
- Sim, Guilherme, e dos brabos, pode
ter certeza.
Fomos para o pátio da estação, em
busca de uma charrete. Guilherme almoçou comigo, já quase no final da tarde.
[1] O cantor Wilson Simonal (1938 –
2000) aproveitou o sucesso que fez no final dos anos 1960 e lançou o Mug, um
pequeno boneco de pano que retratava ele próprio; através de um cordão, ficava pendurado
nos retrovisores internos dos carros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário