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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Livro - Reverso inclinado. Capítulo 3. A simplicidade de um investigador

A simplicidade de um investigador

O meu amigo Guilherme Holders, eu tenho que dizer, era sempre, dentre os investigadores da polícia local, o primeiro a ser lembrado em ocasiões mais graves; meticuloso no trato dos casos mais difíceis na Polícia Civil, raramente deixava algo pendente de solução – antes, pelo contrário, angariou fama entre os seus pares por colocar atrás das grades até os mesmo os mais hábeis criminosos, homicidas ou simples punguistas, aqueles que, por planejarem friamente seus atos, poucos rastros deixam para trás.

Estudava todos os detalhes de cada caso, em seus diversos ângulos, suas diversas possibilidades, sem deixar escapar absolutamente nada. Considerava todas as minúcias possíveis e imagináveis, tal como se usasse uma lupa para examinar os detalhes de uma moeda. Nessas horas, não é exagero dizer, nada ficava sem exame mais acurado, nem mesmo pequenas variantes que, para outros da profissão, seriam invisíveis ou insignificantes.
Guilherme formou o seu prestígio ao longo de sólida carreira; após muitos anos de labuta, amealhou tantos conhecimentos que era normal vê-lo prestando auxílio a muitos iniciantes na profissão, ajudando-os a reconhecer ferimentos dos mais diversos tipos de armas e todos os macetes da área. Nunca foi arrogante e nem jamais guardou para si os conhecimentos que detinha. Fazia questão de compartilhar informações e linhas de investigação. Esse, aliás, é um dos motivos pelos quais era respeitado, inclusive fora dos limites de sua circunscrição. Com frequência era chamado para solucionar crimes  complicados em outras localidades, o que lhe proporcionou, inclusive, a inimizade daqueles que, enciumados, não toleravam ingerência de estranhos.
Vez ou outra ele lamentava não ter participado desta ou daquela investigação, sobremodo das que resultaram em insucesso na identificação do criminoso; dele já ouvi, por exemplo, que se ofereceu para trabalhar no caso do crime do Parque Municipal[1], que ficou famoso na crônica policial de Belo Horizonte:
- Por mim, se aceitassem a minha ajuda, aquele caso estaria solucionado. Eu teria botado na cadeia aquele tal de Dorian Gray das Alterosas[2]. Ah! Tinha, sim ... Com aquele monte de indícios que ficaram pelos caminhos, meu relatório não seria derrubado pelo júri, nunca, nunquinha ... Mas, enfim, lá ficou um crime sem criminoso, não é?
Sempre me pareceu que ele tinha uma boa dose de razão; aquele crime, que abalou a alta sociedade belo-horizontina nos idos dos anos 1950, ficou sem solução, não obstante os vários anos gastos nas apurações. A julgar pelas notícias publicadas nos jornais da época, muito se descobriu nas investigações que se desdobraram não só em algumas capitais brasileiras, mas, também, na cidade de La Paz; dá muito bem para imaginar que já havia material mais que suficiente para instruir o processo em relação à vida pregressa dos personagens daquele crime – ao menos é o que me parece, segundo o que me Guilherme contava. Eu era muito criança quando esse crime ocorreu, só conheci de ouvir dizer.
Meu amigo não tem, nunca teve, aliás, o hábito de se valer de ações violentas para conseguir as confissões mais inesperadas; antes, pelo contrário, sempre diz que a inteligência é a melhor das ferramentas que um detetive pode usar. Abominava qualquer possibilidade de tortura para obter uma informação; é isso o que o tornava diferente no seu meio, ainda mais nos tempos sombrios em que nosso país vivia, com a violência policial grassando, por tudo quanto é canto, desde os porões da ditadura até as mais simples e pequenas Delegacias do interior. E, pior de tudo, inclusive com a complacência dos altos escalões de Brasília, que sabiam dos abusos policiais e se calavam. Quando morria alguém, diziam que era suicídio, e não faltava médico para atestar um enforcamento inusitado; ou, então, fingiam uma troca de tiros pelos centros das cidades e baleavam, em nome da segurança nacional, o cadáver do infeliz prisioneiro, que morria duas vezes.
Sobre isso ele costumava dizer, criticando um colega de profissão, norte-americano, cujos métodos grosseiros ultrapassaram as fronteiras ianques:
- Samuel Spade[3] não tinha necessidade de usar os punhos para encontrar o Falcão Maltês. Dispunha ele de tantas e boas pistas, que a única coisa que justifica aquela truculência toda e aqueles socos para tudo quanto é lado é simplesmente o gosto pela violência; e isso eu acho inadmissível. Não concordo com isso, não.
Apesar da origem germânica do prenome, Guilherme era neto de ingleses pelo lado paterno. Teve educação vitoriana, rígida até demais para os padrões brasileiros; formou-se em direito, mas encantou-se mesmo foi com a profissão de investigador, talvez como fruto da boa memória que sempre cultivou dos grandes detetives da terra dos seus antepassados, cujas histórias vêm sendo celebradas mundialmente.
Zeloso da profissão, devotou alguns anos aos cursos de especialização da sua área; participava, com as economias próprias, de congressos e palestras dos notáveis do ramo, como forma de se atualizar. A par disso, melhorava o quanto podia os seus conhecimentos como autodidata, estudando com afinco alguns aspectos da criminologia que julgava interessantes. Por paradoxal que fosse, não nutria o gosto pelas obras de literatura policial, pois as considerava por demais fantasiosas e simplórias, afastadas das realidades cotidianas. Guilherme nunca foi fã desse gênero literário.
De outro lado, era leitor assíduo de obras especializadas em medicina legal e tinha por hábito acompanhar as perícias e exames de corpo de delito feitos pelos legistas. Quando falava da sua profissão, repetia uma frase que ficou famosa entre os seus interlocutores: “conhecer o estado geral da vítima e os sinais do seu corpo é o primeiro passo para se descobrir o criminoso; o corpo fala” – se bem que, vez ou outra, como qualquer ser humano, ele teve os seus revezes e insucessos.
Sem ter sido agraciado por heranças paternas, levava uma vida pobre e sem qualquer tipo de ostentação: a numismática, esta sim, seguiu sendo sua única paixão para além dos misteres profissionais.
Alto, com um metro e noventa de uma fina estrutura mais óssea e com quase nada de enchimento, Guilherme se destacava também pela cabeça oblonga, encimada por uma pronunciada calva; os parcos cabelos, de uma brancura sem igual, formavam como que um rodapé no entorno do crânio. Sua voz mansa, mas firme, e seus gestos decididos completavam o pequeno perfil desse corajoso e incansável detetive.
De nariz fino, alto e alongado, na sua ponta se sustentavam os óculos de pernas compridas e retas que ficavam presas praticamente fora das orelhas, o que passava a impressão de um objeto em iminente perigo de queda; com isso, as lentes grossas ficavam bem afastadas dos olhos, o que lhe permitia espaço de sobra para olhar, vez em quando, por sobre a armação, reafirmando a sua fisionomia inquisitiva.
Como de costume, eu acompanhava os passos do meu amigo Guilherme, mesmo sabendo que essa parceria não agradava ao delegado do momento e nem nunca agradou aos delegados que o precederam. Mas, enfim, quase sempre agíamos desse modo e naquela ocasião não poderia ser diferente, tão bom era nosso entrosamento. Gostasse ou não gostasse a nova autoridade, quer dizer, isso já era rotina, pois todas as vezes que os meus afazeres me permitiam, lá estava eu metido nas investigações do Guilherme.
Ele era solteiro e morava de aluguel em um pequeno quarto e sala, que não lhe oferecia o conforto necessário para o desenvolvimento de suas atividades. Usava com constância o meu escritório, principalmente nas ocasiões mais delicadas e que exigiam privacidade, fazendo dele o seu quartel general: era lá, com a tolerância da minha família, que ele examinava amontoados de papéis, de fichas, recortes de jornais, telegramas, uma quantidade sem fim da papelada das apurações. Por vezes era no meu escritório que ele tomava depoimentos, principalmente aqueles mais sigilosos e que por isso mesmo não podiam ocorrer na Delegacia, à vista de curiosos.
A par destas facilidades logísticas, Guilherme também contava com a minha modesta contribuição, nunca dispensando sugestões de minha parte – e vez ou outra eu lhe dava palpites interessantes, digo sem falsa modéstia.
Ao longo do tempo, apesar da diferença de idade entre nós (sou vinte e cinco anos mais novo que o Guilherme, mais ou menos) cultivamos uma amizade sólida; essa amizade começou com a numismática e avançou para o mundo profissional – eu, como advogado militante, em início de carreira e com poucas causas amealhadas na rara clientela ainda em formação, nunca vi problemas em acompanhá-lo, ainda que informalmente, nos trabalhos dele – tanto quanto, repito, minhas próprias ocupações permitiam.
Havia uma eterna insistência, da parte dele, para que eu me dedicasse com afinco ao direito penal; mas, minhas preferências pessoais me afastaram dessa área e nunca acedi aos seus apelos. Mantive o gosto pelas investigações criminais apenas como hobby, como atividade paralela, de segundo plano em relação ao gosto pela advocacia civil, ramo em que me considero mais útil para meus clientes.



[1] Crime que aconteceu na capital mineira há algumas décadas; envolvia gente da fina estampa e o assassino nunca foi identificado, mesmo depois de 10 anos de apurações e de processos judiciais.
[2] Apelido dado a um dos indiciados no caso, moço da alta sociedade belo-horizontina.
[3] Ou Sam Spade, detetive criado por Dashiell Hammett, nos anos 1940, nos Estados Unidos; desvendava os mistérios dos crimes valendo-se da mais pura violência, sem pudores – quer dizer, cometia crimes para apurar crimes. O Falcão Maltês é uma das suas obras mais conhecidas.

Um comentário:

  1. Tipo de narrativa que me agrada. Até hoje, sou apaixonada por essa área do direito, embora nunca tenha passado pelos meus pensamentos a ideia de trabalhar com ela. E lá vou eu ....

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