A simplicidade de um investigador
O
meu amigo Guilherme Holders, eu tenho que dizer, era sempre, dentre os
investigadores da polícia local, o primeiro a ser lembrado em ocasiões mais
graves; meticuloso no trato dos casos mais difíceis na Polícia Civil, raramente
deixava algo pendente de solução – antes, pelo contrário, angariou fama entre
os seus pares por colocar atrás das grades até os mesmo os mais hábeis criminosos,
homicidas ou simples punguistas, aqueles que, por planejarem friamente seus
atos, poucos rastros deixam para trás.
Estudava
todos os detalhes de cada caso, em seus diversos ângulos, suas diversas
possibilidades, sem deixar escapar absolutamente nada. Considerava todas as
minúcias possíveis e imagináveis, tal como se usasse uma lupa para examinar os detalhes
de uma moeda. Nessas horas, não é exagero dizer, nada ficava sem exame mais
acurado, nem mesmo pequenas variantes que, para outros da profissão, seriam invisíveis
ou insignificantes.
Guilherme
formou o seu prestígio ao longo de sólida carreira; após muitos anos de labuta,
amealhou tantos conhecimentos que era normal vê-lo prestando auxílio a muitos
iniciantes na profissão, ajudando-os a reconhecer ferimentos dos mais diversos
tipos de armas e todos os macetes da área. Nunca foi arrogante e nem jamais
guardou para si os conhecimentos que detinha. Fazia questão de compartilhar
informações e linhas de investigação. Esse, aliás, é um dos motivos pelos quais
era respeitado, inclusive fora dos limites de sua circunscrição. Com frequência
era chamado para solucionar crimes complicados
em outras localidades, o que lhe proporcionou, inclusive, a inimizade daqueles
que, enciumados, não toleravam ingerência de estranhos.
Vez
ou outra ele lamentava não ter participado desta ou daquela investigação,
sobremodo das que resultaram em insucesso na identificação do criminoso; dele
já ouvi, por exemplo, que se ofereceu para trabalhar no caso do crime do Parque Municipal[1],
que ficou famoso na crônica policial de Belo Horizonte:
-
Por mim, se aceitassem a minha ajuda, aquele caso estaria solucionado. Eu teria
botado na cadeia aquele tal de Dorian
Gray das Alterosas[2].
Ah! Tinha, sim ... Com aquele monte de indícios que ficaram pelos caminhos, meu
relatório não seria derrubado pelo júri, nunca, nunquinha ... Mas, enfim, lá
ficou um crime sem criminoso, não é?
Sempre
me pareceu que ele tinha uma boa dose de razão; aquele crime, que abalou a alta
sociedade belo-horizontina nos idos dos anos 1950, ficou sem solução, não
obstante os vários anos gastos nas apurações. A julgar pelas notícias
publicadas nos jornais da época, muito se descobriu nas investigações que se
desdobraram não só em algumas capitais brasileiras, mas, também, na cidade de La
Paz; dá muito bem para imaginar que já havia material mais que suficiente para
instruir o processo em relação à vida pregressa dos personagens daquele crime –
ao menos é o que me parece, segundo o que me Guilherme contava. Eu era muito
criança quando esse crime ocorreu, só conheci de ouvir dizer.
Meu
amigo não tem, nunca teve, aliás, o hábito de se valer de ações violentas para
conseguir as confissões mais inesperadas; antes, pelo contrário, sempre diz que
a inteligência é a melhor das ferramentas que um detetive pode usar. Abominava
qualquer possibilidade de tortura para obter uma informação; é isso o que o
tornava diferente no seu meio, ainda mais nos tempos sombrios em que nosso país
vivia, com a violência policial grassando, por tudo quanto é canto, desde os porões
da ditadura até as mais simples e pequenas Delegacias do interior. E, pior de
tudo, inclusive com a complacência dos altos escalões de Brasília, que sabiam
dos abusos policiais e se calavam. Quando morria alguém, diziam que era
suicídio, e não faltava médico para atestar um enforcamento inusitado; ou,
então, fingiam uma troca de tiros pelos centros das cidades e baleavam, em nome
da segurança nacional, o cadáver do infeliz prisioneiro, que morria duas vezes.
Sobre
isso ele costumava dizer, criticando um colega de profissão, norte-americano,
cujos métodos grosseiros ultrapassaram as fronteiras ianques:
-
Samuel Spade[3]
não tinha necessidade de usar os punhos para encontrar o Falcão Maltês.
Dispunha ele de tantas e boas pistas, que a única coisa que justifica aquela
truculência toda e aqueles socos para tudo quanto é lado é simplesmente o gosto
pela violência; e isso eu acho inadmissível. Não concordo com isso, não.
Apesar
da origem germânica do prenome, Guilherme era neto de ingleses pelo lado
paterno. Teve educação vitoriana, rígida até demais para os padrões
brasileiros; formou-se em direito, mas encantou-se mesmo foi com a profissão de
investigador, talvez como fruto da boa memória que sempre cultivou dos grandes
detetives da terra dos seus antepassados, cujas histórias vêm sendo celebradas
mundialmente.
Zeloso
da profissão, devotou alguns anos aos cursos de especialização da sua área; participava,
com as economias próprias, de congressos e palestras dos notáveis do ramo, como
forma de se atualizar. A par disso, melhorava o quanto podia os seus
conhecimentos como autodidata, estudando com afinco alguns aspectos da criminologia
que julgava interessantes. Por paradoxal que fosse, não nutria o gosto pelas obras
de literatura policial, pois as considerava por demais fantasiosas e
simplórias, afastadas das realidades cotidianas. Guilherme nunca foi fã desse
gênero literário.
De
outro lado, era leitor assíduo de obras especializadas em medicina legal e tinha
por hábito acompanhar as perícias e exames de corpo de delito feitos pelos
legistas. Quando falava da sua profissão, repetia uma frase que ficou famosa
entre os seus interlocutores: “conhecer o estado geral da vítima e os sinais do
seu corpo é o primeiro passo para se descobrir o criminoso; o corpo fala” – se bem que, vez ou outra, como
qualquer ser humano, ele teve os seus revezes e insucessos.
Sem
ter sido agraciado por heranças paternas, levava uma vida pobre e sem qualquer
tipo de ostentação: a numismática, esta sim, seguiu sendo sua única paixão para
além dos misteres profissionais.
Alto,
com um metro e noventa de uma fina estrutura mais óssea e com quase nada de
enchimento, Guilherme se destacava também pela cabeça oblonga, encimada por uma
pronunciada calva; os parcos cabelos, de uma brancura sem igual, formavam como
que um rodapé no entorno do crânio. Sua voz mansa, mas firme, e seus gestos
decididos completavam o pequeno perfil desse corajoso e incansável detetive.
De
nariz fino, alto e alongado, na sua ponta se sustentavam os óculos de pernas compridas
e retas que ficavam presas praticamente fora das orelhas, o que passava a
impressão de um objeto em iminente perigo de queda; com isso, as lentes grossas
ficavam bem afastadas dos olhos, o que lhe permitia espaço de sobra para olhar,
vez em quando, por sobre a armação, reafirmando a sua fisionomia inquisitiva.
Como
de costume, eu acompanhava os passos do meu amigo Guilherme, mesmo sabendo que essa
parceria não agradava ao delegado do momento e nem nunca agradou aos delegados
que o precederam. Mas, enfim, quase sempre agíamos desse modo e naquela ocasião
não poderia ser diferente, tão bom era nosso entrosamento. Gostasse ou não
gostasse a nova autoridade, quer dizer, isso já era rotina, pois todas as vezes
que os meus afazeres me permitiam, lá estava eu metido nas investigações do Guilherme.
Ele
era solteiro e morava de aluguel em um pequeno quarto e sala, que não lhe oferecia
o conforto necessário para o desenvolvimento de suas atividades. Usava com
constância o meu escritório, principalmente nas ocasiões mais delicadas e que
exigiam privacidade, fazendo dele o seu quartel general: era lá, com a tolerância
da minha família, que ele examinava amontoados de papéis, de fichas, recortes
de jornais, telegramas, uma quantidade sem fim da papelada das apurações. Por
vezes era no meu escritório que ele tomava depoimentos, principalmente aqueles
mais sigilosos e que por isso mesmo não podiam ocorrer na Delegacia, à vista de
curiosos.
A
par destas facilidades logísticas, Guilherme também contava com a minha modesta
contribuição, nunca dispensando sugestões de minha parte – e vez ou outra eu
lhe dava palpites interessantes, digo sem falsa modéstia.
Ao
longo do tempo, apesar da diferença de idade entre nós (sou vinte e cinco anos mais
novo que o Guilherme, mais ou menos) cultivamos uma amizade sólida; essa amizade
começou com a numismática e avançou para o mundo profissional – eu, como
advogado militante, em início de carreira e com poucas causas amealhadas na
rara clientela ainda em formação, nunca vi problemas em acompanhá-lo, ainda que
informalmente, nos trabalhos dele – tanto quanto, repito, minhas próprias
ocupações permitiam.
Havia
uma eterna insistência, da parte dele, para que eu me dedicasse com afinco ao
direito penal; mas, minhas preferências pessoais me afastaram dessa área e
nunca acedi aos seus apelos. Mantive o gosto pelas investigações criminais
apenas como hobby, como atividade
paralela, de segundo plano em relação ao gosto pela advocacia civil, ramo em
que me considero mais útil para meus clientes.
[1] Crime que aconteceu na capital
mineira há algumas décadas; envolvia gente da fina estampa e o assassino nunca
foi identificado, mesmo depois de 10 anos de apurações e de processos
judiciais.
[2] Apelido dado a um dos indiciados no
caso, moço da alta sociedade belo-horizontina.
[3] Ou Sam Spade, detetive criado por Dashiell
Hammett, nos anos 1940, nos Estados Unidos; desvendava os mistérios dos crimes
valendo-se da mais pura violência, sem pudores – quer dizer, cometia crimes
para apurar crimes. O Falcão Maltês é uma das suas obras mais conhecidas.
Tipo de narrativa que me agrada. Até hoje, sou apaixonada por essa área do direito, embora nunca tenha passado pelos meus pensamentos a ideia de trabalhar com ela. E lá vou eu ....
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