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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sábado, 11 de julho de 2020

Livro - Reverso inclinado. Capítulo 6. Na cena do crime


Na cena do crime

Foi com apreensão e insegurança que o delegado foi logo dizendo:
- A morte me foi anunciada pelas onze horas, por telefone: um empregado, o caseiro, encontrou o patrão caído ao pé da cama, mas quem me telefonou foi o filho, Assis Júnior. Antes de vir para cá, mandei-lhe o bilhete. O sangue escorrido no peito e ainda não de todo seco pode ser visto lá na parte de cima do sobrado, onde o corpo está. Tem um relógio despertador caído no chão, quebrado. Vamos lá?

- Sangue escorrido? Muito sangue?
- Sim. Boa quantidade, pela camisa, pelo peito abaixo e pelo chão.
- E foi morto com um punhal? O senhor tem certeza, Dr. Alberto?
A isso o delegado nada respondeu; Guilherme me olhou de soslaio, franzindo o sobrolho.
Rompendo o silêncio, o Dr. Alberto disse:
- Ele foi encontrado ainda em roupas de dormir e por certo foi surpreendido pelo assassino, sem que tivesse tempo de esboçar defesa suficiente para salva a própria vida.
Guilherme perguntou:
- Tem sinais de briga no local?
- Sim, a desarrumação da roupa de cama e da roupa do morto mostra que houve ao menos uma tentativa de luta – respondeu o delegado.
Pensei comigo mesmo: claro, o fazendeiro sempre foi homem bem disposto, até um tanto bruto no seu dia a dia; portanto, se previamente alertado, daria trabalho ao homicida; alto e bem encorpado, estava acostumado aos trabalhos braçais e ostentava excelente compleição física, apesar da idade mais avançada.
Dele falavam, a meia boca, que tinha o péssimo hábito de espancar, não raras vezes, os empregados da fazenda que eventualmente fizessem, sob sua ótica, corpo mole nas lides diárias. E era dele que se dizia, também, tratar-se de pessoa que impunha respeito aos concidadãos, sobremodo aos mais humildes, tal como se fosse um grande suserano tomando conta de seu feudo.
Não era de se espantar com costumes desse jaez; por certo em suas veias corria tudo o que de mais escabroso se praticava desde os tempos das capitanias, cujos vícios e desmandos de toda ordem vieram se derramando através das gerações, em tal magnitude que são difíceis de serem corrigidos pelo tempo, como que passando de pai para filho para todo o sempre.
- E quem está na casa, neste momento?
- Está o Assis Júnior, que é o filho mais velho do morto, você o conhece. Estão também a cozinheira, a camareira e o caseiro. O capataz, que esteve por aqui hoje de manhã, tomou o trem, antes do crime, e foi para São Paulo; os outros todos estão na cozinha, sob a vigilância de dois policiais.
Na sala de entrada, de tamanho grande e pé direito alto, os poucos móveis demonstravam a ausência de requinte, como era próprio da família. Um jogo de sofá, de couro, uma mesa central com quatro cadeiras, todas de madeira. A um canto, uma estante em que ficava uma linda televisão Philco Ford, de aquisição recente; em acima dela, alguns vistosos livros de capas coloridas e outros, de romances e histórias policiais; víamos também uma coleção da enciclopédia Conhecer, encadernada em vermelho vivo e alguns fascículos avulsos espalhados pelas prateleiras, a espera de completar o próximo volume.
Subimos, por uma belíssima e reluzente escada de madeira de lei, até o quarto da vítima; naquela profusão de cômodos saindo do corredor central, encontramos, num deles, na parte da frente, um quarto amplo, mas de simples mobiliário. Estendido bem ao lado da cama, o corpo ainda estava morno: o bilhete que recebemos lá em casa não exagerara.
Lençóis, travesseiros, cobertas, tudo em desalinho, a demonstrar que houve princípio de resistência; na mesinha de cabeceira estavam os óculos do morto; no chão, ao lado do corpo, um relógio despertador, com o vidro quebrado e ponteiros parados nas dez horas.
Presumimos, pelas condições aparentes, que o óbito tinha se verificado entre por volta das dez horas da manhã, não muito além desses limites; o calor do corpo e os ponteiros do relógio nos levavam a essa conclusão aparentemente segura.
Observamos os mesmos detalhes já narrados pelo delegado: a posição do corpo, os detalhes do relógio, enfim, tudo conferia com a descrição que nos foi feita pouco antes pelo Dr. Alberto. Ajoelhado ao lado da vítima, Guilherme examinou com cuidado os três ferimentos, todos na região do coração, bem como o sangue escorrido na camisa e no peito do Dr. Assis. Resmungou qualquer coisa inaudível, talvez se referindo à poça de sangue formada no chão; em seguida, disse, com voz firme e sem olhar para ninguém em especial:
- As três facadas vieram de cima para baixo, com força; vararam a camisa; ao menos uma delas acertou o coração, bem em cheio.
- Facadas? Tem certeza? Perguntou o delegado, um tanto contrafeito, por certo se lembrando do bilhete há pouco escrito.
- Sim, doutor: os furos são abertos e mostram que a arma usada pelo criminoso tinha apenas um lado afiado – e bem afiado. A pele está perfeitamente cortada nas laterais dos buracos, sem sinais de rasgo. Na ponta de cima dos buracos, vemos que entrou o lado grosso e sem fio da faca, enquanto que na ponta de baixo o corte é fino e acaba em nada. Punhal é diferente, tem fio dos dois lados, corta tudo por igual; a pele não fica tão esgarçada. Então, o instrumento usado pelo assassino do Dr. Assis forçou a entrada no tecido, deixando a ferida bem aberta. Por isso é que jorrou muito sangue, compreende doutor?
O delegado contentou-se com a resposta; mas eu não.
- Não compreendo, Guilherme.
- Simples, meu caro: o punhal é fino, tem gume dos dois lados e tem ponta afiadíssima, em forma de seta; ele penetra fundo e não rasga muito a pele; aliás, a pele vai afundando enquanto a lâmina entra, compreende? Depois, a pele, que foi empurrada para dentro, volta junto com o gume, quase que tampando o pequeno buraco que foi feito – e isso faz com que a hemorragia ocorra por dentro, com pouco derramamento de sangue. Esses sinais, próprios da punhalada, não aparecem no peito do Dr. Assis.
- Interessante. Não sabia disso.
- Pois é. A vida vai ensinando essas coisas – respondeu Guilherme, como que cutucando a inexperiência do delegado, que tudo ouvia em silêncio, mal disfarçando a provável irritação.
Para aproveitar o clima pesado, Guilherme arrematou o raciocínio com uma informação inoportuna:
- Por isso o punhal é muito usado para matar porco lá na roça: sobra mais sangue dentro do animal para fazer um bom chouriço.
Não pude conter um pequeno engulho, pela comparação, mas a analogia pareceu-me correta. O delegado, bem observei, continuava impassível diante da cena, por certo envergonhado pelo bilhete.
Em seguida, debruçando-se mais uma vez sobre o cadáver, Guilherme finalizou a análise:
- Noto, também, que um dos ferimentos é bem superficial e deixou uma escoriação linear; é como se fosse o primeiro golpe, frustrado pela ação da vítima, o que me leva a concluir, com boa dose de segurança, que teve luta entre os dois. E depois, vencido pela força do atacante, o Coronel recebeu o último golpe, que foi fatal; neste último golpe, ele ainda estava em pé, como mostra o sangue escorrido do peito para a barriga; deve ter caído lentamente ao lado da cama, eu imagino.
Depois dessas palavras, Guilherme andou pelo quarto, saiu para o corredor e logo voltou; depois, foi para o quarto contíguo, por uma pequena e quase escondida portinhola. Sempre olhando para o chão, ouviu do delegado:
- Em nenhum outro lugar da casa tem sinal de sangue, já examinamos tudo.
- E barro, tem alguma marca por aí?
- Também não. Na frente da casa tem um limpa-pés de ferro, com os característicos sinais de uso recente. Mas, internamente, não tem nada.
Ouvimos essas informações em silêncio, com o meu amigo apenas movendo levemente a cabeça em sinal de concordância.
- Alguma coisa foi roubada?
- Não, nada foi roubado, ao menos aparentemente – respondeu, resoluto, o delegado.
O cofre, no canto do quarto, permanecia fechado, sem sinais de arrombamento. A arma do crime, no entanto, não foi encontrada, apesar das insistentes buscas realizadas na casa e nas suas redondezas pela equipe de auxiliares do Dr. Alberto.
Janelas e portas não apresentavam marcas de arrombamento, foi o que nos garantiu o delegado:
- Meus homens já examinaram tudo, não há qualquer sinal suspeito. Creio, Guilherme, que o assassino seja das relações do morto, quer dizer, é de dentro da casa – acrescentou.
Bingo, doutor delegado, pensei logo! Quanta inteligência! Aliás, era visível no semblante jocoso do meu amigo Guilherme uma expressão de escárnio, como se dissesse: elementar, meu caro delegado, elementar até demais...
Havia a esperança de que o médico legista examinasse o cadáver ainda no local. Todavia, esta esperança foi frustrada:- os dois dos especialistas da cidade estavam em um churrasco e, por isso, disseram por telefone, não tinham possibilidades de desempenhar o trabalho; já o terceiro legista, um nissei magro, com óculos de aros redondos e cabelos em franja, nem sequer foi encontrado no domingo. Mas, na segunda-feira cedo, esse mesmo profissional foi o responsável pela realização dos exames cadavéricos; por sinal, o seu laudo seria utilizado, depois, como um dos argumentos de defesa de um dos suspeitos.
Encerradas as diligências, descemos os três. E o delegado deu ordens para remoção do corpo, querendo impressionar com palavras incisivas e em voz alta:
- Mandem o rabecão levar direto para o necrotério. Mais tarde eu passo lá.
Era hora de interrogar os que aguardavam na grande e bem organizada cozinha, localizada na parte de trás do piso térreo.
Guilherme sempre agia desse modo: primeiro ouvia todos os que pudessem estar envolvidos nos casos em que trabalhava; ouvia-os informalmente; só depois, mais tarde, é que os convocava para o depoimento formal, com as assinaturas de papel passado e tudo o mais que pudesse entranhar no inquérito policial.

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