Na cena do crime
Foi com apreensão
e insegurança que o delegado foi logo dizendo:
- A morte me foi anunciada pelas onze
horas, por telefone: um empregado, o caseiro, encontrou o patrão caído ao pé da
cama, mas quem me telefonou foi o filho, Assis Júnior. Antes de vir para cá,
mandei-lhe o bilhete. O sangue escorrido no peito e ainda não de todo seco pode
ser visto lá na parte de cima do sobrado, onde o corpo está. Tem um relógio
despertador caído no chão, quebrado. Vamos lá?
- Sangue escorrido? Muito sangue?
- Sim. Boa quantidade, pela camisa, pelo
peito abaixo e pelo chão.
- E foi morto com um punhal? O senhor
tem certeza, Dr. Alberto?
A isso o delegado nada respondeu; Guilherme
me olhou de soslaio, franzindo o sobrolho.
Rompendo o silêncio, o Dr. Alberto
disse:
- Ele foi encontrado ainda em roupas
de dormir e por certo foi surpreendido pelo assassino, sem que tivesse tempo de
esboçar defesa suficiente para salva a própria vida.
Guilherme perguntou:
- Tem sinais de briga no local?
- Sim, a desarrumação da roupa de cama
e da roupa do morto mostra que houve ao menos uma tentativa de luta – respondeu
o delegado.
Pensei comigo mesmo: claro, o fazendeiro
sempre foi homem bem disposto, até um tanto bruto no seu dia a dia; portanto, se
previamente alertado, daria trabalho ao homicida; alto e bem encorpado, estava
acostumado aos trabalhos braçais e ostentava excelente compleição física,
apesar da idade mais avançada.
Dele falavam, a meia boca, que tinha o
péssimo hábito de espancar, não raras vezes, os empregados da fazenda que
eventualmente fizessem, sob sua ótica, corpo mole nas lides diárias. E era dele
que se dizia, também, tratar-se de pessoa que impunha respeito aos concidadãos,
sobremodo aos mais humildes, tal como se fosse um grande suserano tomando conta
de seu feudo.
Não era de se espantar com costumes
desse jaez; por certo em suas veias corria tudo o que de mais escabroso se
praticava desde os tempos das capitanias, cujos vícios e desmandos de toda
ordem vieram se derramando através das gerações, em tal magnitude que são difíceis
de serem corrigidos pelo tempo, como que passando de pai para filho para todo o
sempre.
- E quem está na casa, neste momento?
- Está o Assis Júnior, que é o filho
mais velho do morto, você o conhece. Estão também a cozinheira, a camareira e o
caseiro. O capataz, que esteve por aqui hoje de manhã, tomou o trem, antes do crime,
e foi para São Paulo; os outros todos estão na cozinha, sob a vigilância de dois
policiais.
Na sala de entrada, de tamanho grande
e pé direito alto, os poucos móveis demonstravam a ausência de requinte, como
era próprio da família. Um jogo de sofá, de couro, uma mesa central com quatro
cadeiras, todas de madeira. A um canto, uma estante em que ficava uma linda
televisão Philco Ford, de aquisição recente; em acima dela, alguns vistosos
livros de capas coloridas e outros, de romances e histórias policiais; víamos
também uma coleção da enciclopédia Conhecer, encadernada em vermelho vivo e
alguns fascículos avulsos espalhados pelas prateleiras, a espera de completar o
próximo volume.
Subimos, por uma belíssima e reluzente
escada de madeira de lei, até o quarto da vítima; naquela profusão de cômodos
saindo do corredor central, encontramos, num deles, na parte da frente, um quarto
amplo, mas de simples mobiliário. Estendido bem ao lado da cama, o corpo ainda
estava morno: o bilhete que recebemos lá em casa não exagerara.
Lençóis, travesseiros, cobertas, tudo
em desalinho, a demonstrar que houve princípio de resistência; na mesinha de
cabeceira estavam os óculos do morto; no chão, ao lado do corpo, um relógio
despertador, com o vidro quebrado e ponteiros parados nas dez horas.
Presumimos, pelas condições aparentes,
que o óbito tinha se verificado entre por volta das dez horas da manhã, não muito
além desses limites; o calor do corpo e os ponteiros do relógio nos levavam a
essa conclusão aparentemente segura.
Observamos os mesmos detalhes já
narrados pelo delegado: a posição do corpo, os detalhes do relógio, enfim, tudo
conferia com a descrição que nos foi feita pouco antes pelo Dr. Alberto. Ajoelhado
ao lado da vítima, Guilherme examinou com cuidado os três ferimentos, todos na
região do coração, bem como o sangue escorrido na camisa e no peito do Dr.
Assis. Resmungou qualquer coisa inaudível, talvez se referindo à poça de sangue
formada no chão; em seguida, disse, com voz firme e sem olhar para ninguém em
especial:
- As três facadas vieram de cima para
baixo, com força; vararam a camisa; ao menos uma delas acertou o coração, bem
em cheio.
- Facadas? Tem certeza? Perguntou o
delegado, um tanto contrafeito, por certo se lembrando do bilhete há pouco
escrito.
- Sim, doutor: os furos são abertos e
mostram que a arma usada pelo criminoso tinha apenas um lado afiado – e bem
afiado. A pele está perfeitamente cortada nas laterais dos buracos, sem sinais
de rasgo. Na ponta de cima dos buracos, vemos que entrou o lado grosso e sem
fio da faca, enquanto que na ponta de baixo o corte é fino e acaba em nada.
Punhal é diferente, tem fio dos dois lados, corta tudo por igual; a pele não
fica tão esgarçada. Então, o instrumento usado pelo assassino do Dr. Assis forçou
a entrada no tecido, deixando a ferida bem aberta. Por isso é que jorrou muito
sangue, compreende doutor?
O delegado contentou-se com a resposta;
mas eu não.
- Não compreendo, Guilherme.
- Simples, meu caro: o punhal é fino,
tem gume dos dois lados e tem ponta afiadíssima, em forma de seta; ele penetra fundo
e não rasga muito a pele; aliás, a pele vai afundando enquanto a lâmina entra,
compreende? Depois, a pele, que foi empurrada para dentro, volta junto com o
gume, quase que tampando o pequeno buraco que foi feito – e isso faz com que a hemorragia
ocorra por dentro, com pouco derramamento de sangue. Esses sinais, próprios da
punhalada, não aparecem no peito do Dr. Assis.
- Interessante. Não sabia disso.
- Pois é. A vida vai ensinando essas coisas
– respondeu Guilherme, como que cutucando a inexperiência do delegado, que tudo
ouvia em silêncio, mal disfarçando a provável irritação.
Para aproveitar o clima pesado, Guilherme
arrematou o raciocínio com uma informação inoportuna:
- Por isso o punhal é muito usado para
matar porco lá na roça: sobra mais sangue dentro do animal para fazer um bom
chouriço.
Não pude conter um pequeno engulho,
pela comparação, mas a analogia pareceu-me correta. O delegado, bem observei, continuava
impassível diante da cena, por certo envergonhado pelo bilhete.
Em seguida, debruçando-se mais uma vez
sobre o cadáver, Guilherme finalizou a análise:
- Noto, também, que um dos ferimentos
é bem superficial e deixou uma escoriação linear; é como se fosse o primeiro
golpe, frustrado pela ação da vítima, o que me leva a concluir, com boa dose de
segurança, que teve luta entre os dois. E depois, vencido pela força do
atacante, o Coronel recebeu o último golpe, que foi fatal; neste último golpe, ele
ainda estava em pé, como mostra o sangue escorrido do peito para a barriga;
deve ter caído lentamente ao lado da cama, eu imagino.
Depois dessas palavras, Guilherme andou
pelo quarto, saiu para o corredor e logo voltou; depois, foi para o quarto
contíguo, por uma pequena e quase escondida portinhola. Sempre olhando para o
chão, ouviu do delegado:
- Em nenhum outro lugar da casa tem
sinal de sangue, já examinamos tudo.
- E barro, tem alguma marca por aí?
- Também não. Na frente da casa tem um
limpa-pés de ferro, com os característicos sinais de uso recente. Mas,
internamente, não tem nada.
Ouvimos essas informações em silêncio,
com o meu amigo apenas movendo levemente a cabeça em sinal de concordância.
- Alguma coisa foi roubada?
- Não, nada foi roubado, ao menos
aparentemente – respondeu, resoluto, o delegado.
O cofre, no canto do quarto,
permanecia fechado, sem sinais de arrombamento. A arma do crime, no entanto,
não foi encontrada, apesar das insistentes buscas realizadas na casa e nas suas
redondezas pela equipe de auxiliares do Dr. Alberto.
Janelas e portas não apresentavam marcas
de arrombamento, foi o que nos garantiu o delegado:
- Meus homens já examinaram tudo, não
há qualquer sinal suspeito. Creio, Guilherme, que o assassino seja das relações
do morto, quer dizer, é de dentro da casa – acrescentou.
Bingo, doutor delegado, pensei logo!
Quanta inteligência! Aliás, era visível no semblante jocoso do meu amigo Guilherme
uma expressão de escárnio, como se dissesse: elementar, meu caro delegado,
elementar até demais...
Havia a esperança de que o médico
legista examinasse o cadáver ainda no local. Todavia, esta esperança foi
frustrada:- os dois dos especialistas da cidade estavam em um churrasco e, por
isso, disseram por telefone, não tinham possibilidades de desempenhar o trabalho;
já o terceiro legista, um nissei magro, com óculos de aros redondos e cabelos em
franja, nem sequer foi encontrado no domingo. Mas, na segunda-feira cedo, esse
mesmo profissional foi o responsável pela realização dos exames cadavéricos;
por sinal, o seu laudo seria utilizado, depois, como um dos argumentos de
defesa de um dos suspeitos.
Encerradas as diligências, descemos os
três. E o delegado deu ordens para remoção do corpo, querendo impressionar com
palavras incisivas e em voz alta:
- Mandem o rabecão levar direto para o
necrotério. Mais tarde eu passo lá.
Era hora de interrogar os que
aguardavam na grande e bem organizada cozinha, localizada na parte de trás do
piso térreo.
Guilherme sempre agia desse modo:
primeiro ouvia todos os que pudessem estar envolvidos nos casos em que
trabalhava; ouvia-os informalmente; só depois, mais tarde, é que os convocava
para o depoimento formal, com as assinaturas de papel passado e tudo o mais que
pudesse entranhar no inquérito policial.
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